Abracei o fanatismo ao descobrir que só o Deus pregado por minha Igreja é o verdadeiro. Todos os outros deuses, todas as outras religiões, todas as outras tradições espirituais que não creem como eu creio são heréticas, ofendem a Deus, procedem do diabo e merecem ser varridas da face da Terra.
Os fiéis dessas Igrejas que não professam o meu Credo estão condenados às chamas do Inferno e só haverão de se salvar aqueles que se arrependerem, abandonarem seus cultos idólatras e abraçarem a única e verdadeira fé – esta que a minha Igreja manifesta.
Tornei-me fanático em sucessivas etapas. Fui criado em uma família católica e, desde cedo, aprendi que os protestantes são infiéis por não respeitarem a virgindade de Maria nem acatarem a autoridade do papa.
Ridicularizei os espíritas por admitirem que se comunicam com os mortos. Acusei os judeus de terem assassinado Jesus. Abominei os ritos de matriz africana como supersticiosos e orquestrados pelo demônio.
Tivesse eu poder, haveria de banir da sociedade todas essas crendices que tomam o Santo Nome de Deus em vão.
Até que um dia sofri um acidente de trânsito no centro de Salvador, onde me encontrava a trabalho. Fui atropelado por uma moto que surgiu inesperadamente quando eu atravessava o Largo Terreiro de Jesus.
Fui socorrido por um desconhecido que me levou a um hospital evangélico em seu carro. Por eu estar inconsciente, devido à pancada da cabeça no solo, ele assumiu os custos apresentados pelo pronto-socorro e ainda assinou um termo de responsabilidade. Como deixou telefone e endereço, ao receber alta fui agradecer-lhe. Soube que é ateu.
Fiquei me perguntando se todos os fiéis de minha Igreja seriam capazes de prestar igual solidariedade ou se passariam indiferentes diante de um acidentado, e ainda se autodesculpariam com este raciocínio cínico: “Nada tenho a ver com isso.”
No hospital, fui visitado por uma senhora espírita, que me deu grande consolo, já não tenho parentes na capital baiana.
Manifestei a ela meu estranhamento ao fato de os espíritas afirmarem conversar com os mortos. Ela retrucou com um sorriso: “Vocês, católicos, conversam com quem quando oram a São Jorge, Santo Expedito e Santo Antônio?”
Meu médico era um judeu casado com uma palestina. E as duas enfermeiras, muito atenciosas, frequentavam o candomblé e a umbanda.
Ao deixar o hospital, tive a surpresa de encontrar, na pousada na qual me hospedara, a mochila que havia perdido no acidente. Dentro, todos os meus pertences, inclusive o dinheiro que eu tinha retirado do banco para pagar a hospedagem.
Um taxista encontrou o cartão da pousada entre meus documentos, devolveu a mochila e informou o que me havia ocorrido. Como deixara o telefone dele, liguei para agradecer. Não resisti à pergunta: “Por que o senhor devolveu todos os meus pertences, inclusive o dinheiro?” Ele simplesmente respondeu: “Sou muçulmano.”
Frei Betto
Autor de 58 livros, no Brasil e exterior, estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia.
Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
Fonte: http://hojeemdia.com.br/opinião/colunas/frei-betto-1.334186
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